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Rodrigo Melhado – Sociologia Digital https://sociologiadigital.org projeto coletivo que reúne discussões, textos, notícias e conteúdos relacionados às mídias digitais, Ciências Sociais, Cultura e Sociedade. Tue, 06 Oct 2020 21:56:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.2 https://sociologiadigital.org/wp-content/uploads/2019/11/cropped-logo-navbar-32x32.png Rodrigo Melhado – Sociologia Digital https://sociologiadigital.org 32 32 ENTREVISTA: ‘PANDEMIA MOSTROU QUE MUDANÇAS DO DIA PARA A NOITE SÃO POSSÍVEIS’, DIZ PESQUISADORA KATE RAWORTH https://sociologiadigital.org/2020/entrevista-pandemia-mostrou-que-mudancas-do-dia-para-a-noite-sao-possiveis-diz-pesquisadora-kate-raworth-3/ https://sociologiadigital.org/2020/entrevista-pandemia-mostrou-que-mudancas-do-dia-para-a-noite-sao-possiveis-diz-pesquisadora-kate-raworth-3/#respond Wed, 23 Sep 2020 01:45:41 +0000 https://sociologiadigital.org/?p=719 COMO QUALQUER ADOLESCENTE britânica nos anos 1980, Kate Raworth compreendia o mundo principalmente pelas imagens do noticiário televisivo. Sua memória guardou cenas como as das crianças etíopes raquíticas por causa da fome, das fileiras intermináveis de mortos após o vazamento de um gás tóxico na Índia, em 1984, e do derramamento de petróleo da Exxon nas águas límpidas do Alasca, em 1989. Na época, ela já estava certa de que militaria pelas causas ambientais e pela erradicação da pobreza. Mas suas ações só seriam efetivas, pensava, se conseguisse propor alternativas ao modelo econômico vigente – o paradigma neoliberal, fortemente propagandeado pela mesma mídia que, ironicamente, noticia suas trágicas consequências.

Três décadas depois, o nome de Kate Raworth vem sendo requisitado por governos do mundo inteiro. Motivados pela crise imposta pela pandemia do coronavírus, esses lugares sentiram a urgência de reformular a lógica da vida urbana e a relação com o meio ambiente e viram em Raworth parte da resposta.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo

Formada em economia pela Universidade de Oxford, com experiência trabalhando em missões de campo pela Organização das Nações Unidas, uma década de trabalho na Oxfam e dezenas de viagens pelos cantos mais recônditos e subdesenvolvidos do planeta, Raworth lançou uma teoria econômica que, em 2011, desafiou os mantras ortodoxos da área e, em 2017, virou o livro “Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo”.

Na obra, a autora ressalta as limitações das doutrinas econômicas clássicas e defende a adoção de uma nova abordagem, própria do século 21, que perceba as interconexões dos fluxos produtivos, sociais e ecológicos. O argumento central de Raworth é que precisamos esquecer o crescimento do PIB enquanto medidor da prosperidade humana. Afinal, não adianta ter uma economia global que cresça 3% ao ano e chegue ao triplo até 2050, se um bilhão de pessoas no mundo vive com no máximo três dólares por dia, 68 milhões de jovens não conseguem emprego, a água acabar para dois terços da humanidade, lixo plástico superar o número de peixes nos oceanos ou se a temperatura média da Terra aumentar 4°C até o final do século.

No lugar do crescimento do PIB, Raworth sugere um diagrama que, “por mais ridículo que possa parecer, ficou semelhante a um donut, daqueles com um furo no meio”, escreveu ela no livro de 2017. O donut representa a faixa circular na qual as necessidades humanas e o meio ambiente podem conviver em equilíbrio. Para fora dessa faixa, estão os exageros da humanidade quanto ao uso de recursos naturais. Para dentro da faixa (o buraco), estão as crises humanitárias e a escassez de recursos. Já a superfície da rosquinha é onde está o equilíbrio socioambiental, e onde devemos ficar, não caindo para fora, nem para dentro.

Assim que Raworth levou o modelo Donut a público, em 2011, recebeu elogios de delegações de diversos países em conferências da ONU. “Sempre pensei em desenvolvimento sustentável dessa forma. Se ao menos você pudesse fazer os europeus enxergarem desse mesmo jeito”, disse uma representante argentina, segundo o livro da britânica.

O donut de Raworth logo virou uma imagem icônica dentro dos círculos ambientalistas. Em 2015, suas ideias ganharam o respaldo dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para 2030 – que incluem, entre outras metas, a erradicação da pobreza e da fome, o desenvolvimento de cidades e comunidades sustentáveis e também ações imediatas de mitigação contra as mudanças climáticas, como a britânica já propunha em seu modelo.

Mas foi em abril deste ano, em plena pandemia do coronavírus, que uma notícia fez as ideias de Kate Raworth saírem de vez da bolha: Amsterdã anunciou publicamente que implementaria o modelo Donut, com iniciativas de alimentação sustentável, políticas de redução no consumo e incentivo à reciclagem e à reutilização de produtos. Foi a primeira cidade do mundo a fazê-lo oficialmente. A divulgação da capital holandesa estimulou outros governos e organizações a buscarem a mentoria da economista, que vem se reunindo com diversos integrantes do C-40, o grupo global de cidades comprometidas a enfrentar as mudanças climáticas.

Segundo ela, já recebeu mais de 400 registros de cidades, estados e regiões que querem implementar sua teoria. Copenhague aprovou uma resolução para definir, até o fim do ano, como vai se transformar em uma cidade Donut. O município de Cali, na Colômbia, também decidiu adotar o modelo para estabelecer novos indicadores socioeconômicos e monitorar o progresso sustentável a longo prazo. E, na Costa Rica, as ideias da economista também já servem de referência para o modelo de desenvolvimento econômico do país. “Estou muito animada em transferir esse design inicial para cidades e países do chamado sul global”, comentou Raworth. Pela crescente popularidade do modelo Donut, Raworth foi recentemente incluída em um top 5 da Forbes de mulheres que estão revolucionando o estudo da economia a nível mundial.

Atualmente, ela é professora e pesquisadora do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, e também associada sênior do Instituto de Lideranças Sustentáveis da Universidade de Cambridge. A fama meteórica tem dado ainda mais trabalho. Para dar conta de tantas demandas, o Laboratório de Ação da Economia Donut, força-tarefa que Raworth montou para difundir a aplicação de sua teoria, vai lançar uma plataforma de integração em setembro. O objetivo é reunir e orientar os interessados em implementar o Donut, além de, a partir de outubro, promover palestras e seminários sobre o assunto. Segundo Raworth, o novo site vai ajudar a desenvolver “ideias que nenhum de nós jamais poderia ter sozinho, mas que juntos podemos criar de forma brilhante”.

Abaixo, confira a entrevista completa com Kate Raworth:

Intercept: Por que você pensa que é necessário reformular as políticas de desenvolvimento econômico para o século 21?

Kate Raworth: A economia do século 20 foi fundada na crença de que o sucesso econômico depende do crescimento sem fim. Mas há custos ao perseguir esse crescimento rápido e contínuo. É por isso que o século 21 começou com um colapso financeiro, o desastre climático e agora o lockdown pela covid-19. Precisamos sair dessa crise com uma visão transformada sobre o que é o sucesso econômico, e não se trata de um crescimento sem fim: é prosperidade. Precisamos de economias e sociedades que sejam prósperas e resilientes aos choques que, como sabemos, já são parte desse sistema.

A economia do século 20 foi fundada na crença de que o sucesso econômico depende do crescimento sem fim.

Kate Raworth 2020 para Intercept.

Como você explicaria o modelo econômico Donut a alguém que não é familiarizado com esse conceito?

Bem, no século 20, o progresso econômico tinha o formato de uma linha ascendente de crescimento constante. No século 21, sucesso significa prosperar em equilíbrio. E, por mais ridículo que possa parecer, o formato desse sucesso é o de um donut com um buraco no meio. Então, não deixe ninguém ficar sem os recursos essenciais para a vida no meio do buraco do donut, mas também não ultrapasse a camada superior, não coloque tanta pressão no planeta para não ultrapassar os seus limites. Nós precisamos achar um equilíbrio entre as necessidades de todas as pessoas e as necessidades do planeta. Precisamos viver entre os limites do donut. As pessoas entendem isso bem rápido.

Qualquer cidade do mundo pode adotar esse modelo?

Quando estabelecemos o modelo Donut, nós convidamos cidades e lugares a se fazer essa pergunta bem século 21: “como a sua cidade pode ser o lar de pessoas prósperas, nesse lugar próspero, respeitando o bem-estar de todas as pessoas e a saúde de todo o planeta?”. Isso convida todos os lugares a ter alta ambição local, por seu próprio povo e por seu próprio relacionamento com a natureza.

Mas estabelece essa aspiração em um contexto de responsabilidade global, para garantir que o jeito de prosperar da cidade respeite as pessoas que a abastecem, por meio das cadeias de abastecimento global e todo o trabalho envolvido: a seleção, a limpeza, a embalagem que vai nos alimentos, nas roupas, nos aparelhos eletrônicos, nos materiais de construção que são importados todos os dias para todas as cidades e, posteriormente, derramados como resíduos e poluição no outro lado da cadeia.

Nós convidamos as cidades para que cada uma se pergunte qual é seu impacto na saúde de todo o planeta: estamos falando de emissões de carbono, uso da água, impacto no solo, uso de fertilizantes e todos esses recursos que são importados. E essa longa questão, que é ao mesmo tempo social e ecológica, local e global, se aplica a qualquer cidade no mundo. É claro que o modelo vai ser diferente quando aplicado em lugares diferentes, mas essa é a beleza da coisa: pode ser adaptada para qualquer lugar. Estamos muito confiantes porque, embora tenhamos começado em cidades e países de alta renda, estamos recebendo muito interesse de outros lugares que já vislumbram exatamente como querem adaptar o modelo a seus próprios conceitos e realidades.

Raworth faz palestra em conferência sobre o clima sediada em Londres.

Foto: NurPhoto via Getty Images

Como você avalia a possibilidade de países tentarem compensar suas atividades de produção após esse período de suspensão total ou parcial por causa da pandemia com práticas ainda mais predatórias ao meio ambiente?

A pandemia do coronavírus nos ensinou que somos todos vulneráveis. Mas também nos mostrou que mudanças profundas são possíveis: no jeito que vivemos, no que pensamos que é normal e nas políticas públicas que os governos podem colocar em prática. Como agora tentamos emergir dessa crise, toda nação precisa decidir qual caminho seguir. Alguns países, sem dúvida, irão redobrar as atividades econômicas extrativistas que já praticavam antes, tentando principalmente recuperar o crescimento que perderam nesse período. Mas esses pagarão um alto preço, por meio de danos ecológicos e sociais.

Por outro lado, muitos outros países estão começando a buscar uma economia regenerativa, como a Nova Zelândia ou a Costa Rica, por exemplo. Esses países compreenderam que há um caminho diferente a ser seguido, e que esse é exatamente o momento para se dedicar a essa transformação, investindo em energias renováveis, em empregos e empresas locais de cada comunidade. Investir em cidades e negócios que produzam bem-estar às famílias, bairros e à sociedade. Em vez de aparecer como índices de crescimento do PIB, esses benefícios econômicos significarão maior bem-estar para as pessoas e para o ecossistema, e vão aparecer em outras estatísticas que refletem esses benefícios à humanidade e ao planeta.

Seu livro Economia Donut foi publicado em 2017, mas suas ideias estão ganhando ainda mais visibilidade agora. Você acha que a pandemia do coronavírus impulsionou a busca pelo seu modelo econômico?Queremos viver em sociedades que nos coloquem sob intenso estresse e que coloquem nosso ecossistema também sob forte estresse?

Sim, com certeza estamos percebendo mais interesse na Economia Donut e na ‘cidade Donut’ do que haveria sem a pandemia do coronavírus. Essa pandemia tem sido devastadora para o estilo de vida de muitas pessoas, e claro, levado a vida de muitos também, como no meu país e no seu. Isso também deu uma razão para as pessoas pararem e refletirem sobre o estilo de vida que havia virado normal, e também para perguntarmos a nós mesmos se queremos viver em sociedades que nos coloquem sob intenso estresse e que coloquem nosso ecossistema também sob forte estresse. Mas há novas alternativas.

Fiquei muito impressionada com o fato de que Amsterdã lançou seu retrato de cidade Donut em 8 de abril. E houve um real e imediato interesse internacional, já que outros países começaram a pensar em como queriam emergir da pandemia, qual direção queriam seguir. Acredito que a mudança acontece quando as pessoas são inspiradas por outras pessoas que fazem o que se julgava impossível. Assim, um prefeito se inspira em outro prefeito que já está colocando em prática a Economia Donut.

Convidamos as pessoas a se cadastrarem em nossa iniciativa, se estivessem interessadas em adaptar o modelo Donut ao seu bairro, ou nação, ou cidade, ou povoado, ou vila, e tivemos mais de 400 manifestações de interesse, de todo o mundo. Portanto, agora queremos disponibilizar esta metodologia gratuitamente, para que outros possam adaptá-la e implementá-la em seus contextos e assim torná-la o mais útil possível.

Esse modelo pode ser igualmente aplicável às capitais do “primeiro mundo” e às cidades do “terceiro mundo”, mesmo considerando diferenças estruturais e desigualdades sociais?

Nós desenvolvemos essa estrutura em conjunto com o C-40, a ambiciosa rede global de cidades de liderança climática, e intencionalmente buscamos a aplicação prática de suas primeiras versões em cidades de alta renda e alto consumo do norte global, pois acreditamos que é lá onde essa transformação tem a obrigação de começar. Entretanto, a estrutura do Donut é absolutamente adaptável a cidades e países com todos os níveis de renda. Após a aplicação inicial em cidades de alta renda do norte global, nossa ideia é mostrar que a estrutura do modelo também é aplicável a cidades de média e baixa renda de qualquer país do mundo, desenvolvendo maneiras de implementação que realmente captem a essência dos problemas mais relevantes desses lugares. Pela perspectiva do modelo Donut, todos os países – sejam ricos ou pobres – são “países em desenvolvimento”.

O que é o C-40 e qual a sua conexão com o grupo?

O C-40 é uma organização internacional com mais de 96 cidades-membro, e todas tiveram que se comprometer a se transformar para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C. Então, pode-se dizer que são as cidades do mundo mais ambiciosas em relação ao clima. São cidades de países ricos e pobres, do norte e do sul global.

Nós, do Laboratório de Ação da Economia Donut, estamos trabalhando em conjunto com eles, e em companhia também da Circle Economy e da Biomimicry 3.8, para criar um escalonamento da cidade Donut e encontrar uma metodologia de aplicação padrão para todas as cidades. Assim, começamos com Amsterdã, e então passaremos às cidades de Portland e Filadélfia, nos Estados Unidos. Amsterdã foi a cidade que já publicou o seu retrato, já acessível ao público.

São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba também fazem parte do C-40. Que tipo de desafios especiais lugares com maior desigualdade social e problemas estruturais enfrentam para alcançar esses objetivos? Qual é o contexto especial para países economicamente desfavorecidos?

Bem, o Brasil é um país que está atualmente muito aquém do que deveria no ‘Donut global’: milhões de pessoas no Brasil não desfrutam dos recursos essenciais à vida, e, ainda assim, o país está ultrapassando seu limite de impacto ecológico, deixando uma marca na Terra muito maior do que deveria. Então, o Brasil é um país que precisa se ajustar, ao mesmo tempo, nos dois lados do donut. Nesse contexto, é similar ao que precisam fazer também África do Sul, Egito, Rússia e Indonésia, por exemplo.

O jeito que os países da América Latina farão isso exatamente virá do seu próprio continente, pois as soluções precisam ser locais. Mas as dinâmicas que usamos são comuns: primeiro, a transformação de dinâmicas de design degenerativo, indústrias que esgotam o planeta e degeneram seu sistema de vida para dinâmicas que sejam de design regenerativo. Isso significa se tornar circular, trabalhar com e nos limites dos ciclos de vida do planeta. Ainda, a segunda dinâmica é abandonar estruturas econômicas que têm design divisivo, deixando valores e oportunidades nas mãos de poucos, e transformar essas dinâmicas em distributivas, fazendo as oportunidades e valores bem mais acessíveis a toda sociedade. Isso acontece com a propriedade de terras, propriedade de casas, propriedade de empresas, propriedade de ideias, do modelo monetário e dos serviços públicos. Assim, há muitas maneiras diferentes de criar economias e sociedades distributivas.

Alguns especialistas afirmam que a atual pandemia é um problema global em uma escala de tempo menor e mais específica, enquanto as mudanças climáticas são uma era inteira. Como você enxerga os dois eventos e que lições podemos aprender com um para enfrentar o outro?

É absolutamente verdade que a crise do coronavírus acontece em uma escala muito mais rápida do que a crise das mudanças climáticas. O que eu acho especialmente interessante sobre essa diferença é que, no caso da pandemia atual, há um período muito mais curto entre as decisões que os políticos tomam e o impacto dessas decisões.A pandemia tem nos mostrado até agora é que discursos políticos vazios não diminuem as taxas de infecção, políticas competentes sim.

Normalmente, a maioria das políticas públicas, sejam econômicas, educacionais, ou mesmo ambientais, demoram muito para ter resultados práticos observáveis, porque se passa um longo período desde a aplicação dessa política até o seu impacto real. E, na maioria das vezes, os políticos que criaram essa política já saíram do poder quando os resultados aparecem. Entretanto, com o coronavírus, as decisões tomadas em dezembro, janeiro, fevereiro e março pelos governantes ao redor do mundo todo já estão dando resultados, sejam eles bons ou ruins. Então isso cria uma grande capacidade de responsabilização quase imediata dos políticos que estão tomando as decisões no presente, e o que a pandemia tem nos mostrado até agora é que discursos políticos vazios não diminuem as taxas de infecção, políticas competentes sim. E podemos observar uma grande diferença entre a crise em países onde os políticos menosprezaram a pandemia do coronavírus, dizendo que era uma fantasia e um exagero da mídia, como no meu país e no seu, e a crise em países como a Coreia do Sul, a Nova Zelândia e a Alemanha, onde levaram a pandemia a sério desde o início e conseguiram minimizar seus efeitos. Portanto, essa pandemia é uma grande e poderosa demonstração da competência, ou incompetência, dos governos em lidar com crises graves.

Agora, a crise da mudança climática é muito mais dura e difícil, pois acontece em uma escala de tempo muito mais longa, o que significa que os políticos não podem ser tão facilmente responsabilizados em curto prazo. Mas o que a atual pandemia nos mostrou é que grandes mudanças são possíveis, mesmo da noite para o dia. Cidades que possuíam um problema endêmico de moradores de rua, por exemplo, conseguiram resolver a situação em poucos dias, colocando-os em hotéis e outras acomodações. Países que jamais considerariam instituir uma renda básica universal, ou semanas de trabalho de apenas quatro dias, por exemplo, e diziam que essas políticas eram impraticáveis, de repente estão apresentando pacotes de ajuda financeira nesses moldes. Então, nesse sentido, acredito que a presente crise serviu também para abrir os olhos das pessoas para o entendimento de que políticas transformativas alternativas são possíveis, mas que nós não precisamos apenas persegui-las em tempos de crise. Nós podemos escolher usufruir dessas políticas de forma permanente, para criarmos o futuro que já sabemos que queremos.

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Para onde os ‘anseios da sociedade’ guiarão Luiz Fux, o novo presidente do STF? Aqui vão umas pistas. https://sociologiadigital.org/2020/para-onde-os-anseios-da-sociedade-guiarao-luiz-fux-o-novo-presidente-do-stf-aqui-vao-umas-pistas-2/ https://sociologiadigital.org/2020/para-onde-os-anseios-da-sociedade-guiarao-luiz-fux-o-novo-presidente-do-stf-aqui-vao-umas-pistas-2/#respond Wed, 23 Sep 2020 01:44:21 +0000 https://sociologiadigital.org/?p=710 EM JULHO DO ANO PASSADO, o ministro do STF Luiz Fux declarou em uma palestra para investidores: “Quero garantir que a Lava Jato vai continuar. E essa palavra não é de um brasileiro, é de alguém que assume a presidência do Supremo Tribunal Federal no ano que vem, podem me cobrar.” Até aqui essa promessa tem sido cumprida com louvor, sob os aplausos do lavajatismo.

Fux assumiu a presidência do STF num dos momentos mais complicados para a corte desde a redemocratização. Um juiz marcado pelo apoio absoluto à Lava Jato — a operação que naturalizou a violação da Constituição para atingir fins políticos — vai comandar um STF sob permanente pressão do bolsonarismo. Registre-se que, há poucos meses, indignado com decisões do Supremo, Bolsonaro decidiu mandar tropas para intervir no STF.

“Excelente. In Fux we trust“, escreveu o então juiz Sergio Moro para o seu parceiro lavajatista no MPF Deltan Dallagnol. Foi uma resposta ao relato de uma conversa que o procurador teve com Fux, na qual deixou claro o total alinhamento do ministro ao lavajatismo: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos, mais uma vez. Só faltou, como bom carioca, chamar-me pra ir à casa dele rs. Mas os sinais foram ótimos”. Fux é o homem da força-tarefa no STF.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo

Nem as publicações da Vaza Jato, que escancaram as barbaridades da operação, abalaram o lavajatismo de Fux. Isso ficou bastante claro em seu discurso de posse. Prestou reverências à força-tarefa e prometeu defendê-la: “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro”. Fux fala isso em um momento em que a Lava Jato passou a sofrer algumas derrotas no Supremo. Se depender do novo presidente, isso não irá mais se repetir.

É importante lembrar como o novo presidente do STF se curvou diante da violência institucional comandada pela Lava Jato. A popularidade da força-tarefa seduziu Fux, que não viu problema em driblar a Constituição para atender aos interesses lavajatistas. As tabelinhas entre procuradores e Fux eram frequentes como, por exemplo, quando ele suspendeu uma liminar que autorizava uma entrevista de Lula à Folha, atendendo a um pedido do Partido Novo. Na decisão, o ministro afirmou que “se faz necessária a relativização excepcional da liberdade de imprensa”.

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No escurinho do Telegram, os procuradores temiam que a entrevista de Lula pudesse ajudar Haddad. Eles comemoram muito a decisão de Fux. Na época, o advogado da Folha de S. Paulo declarou que a decisão do ministro foi “o mais grave ato de censura desde o regime militar”. E foi. Mesmo dentro da cadeia, Lula era o líder nas pesquisas para presidente. Uma entrevista sua tinha grande potencial ajudar a alavancar Haddad, daí o desespero dos lavajatistas em impedi-la. Após suspender a liminar, Fux disse que as decisões da corte deveriam representar “o anseio da sociedade” — uma declaração vergonhosa para um ministro do STF, que deveria se guiar apenas pela Constituição, e não pelas paixões populares. Isso é lavajatismo na sua mais pura essência.Como bom lavajatista que é, Fux ajudou, ainda que indiretamente, a eleger Bolsonaro.

A Vaza Jato trouxe à tona o modo como a operação manipulava, com ajuda da grande mídia, o tal “anseio da sociedade”. Fux chancelou um ato de censura para atender os interesses da Lava Jato e, por tabela, contribuiu para a manutenção de Bolsonaro na liderança das pesquisas.

No discurso de posse, Fux mandou também um recado ao Planalto ao afirmar que a harmonia entre os poderes não se confunde com “contemplação ou subserviência”. A expectativa é a de que Fux seja mais duro com Bolsonaro do que foi Toffoli, até porque lavajatismo e bolsonarismo estão brigados. Mas é importante lembrar que, como bom lavajatista que é, Fux ajudou, ainda que indiretamente, a eleger Bolsonaro. Nos dois anos que antecederam a eleição, o ministro achou razoável ficar sentado em cima do processo em que o então candidato foi acusado de fazer apologia ao estupro naquele vergonhoso episódio com Maria do Rosário no Salão Verde. Se fosse condenado, Bolsonaro se tornaria inelegível.

Nos dois anos que precederam a eleição de 2018, Fux ficou sentado em cima do processo que acusava Bolsonaro de apologia ao estupro.

Foto: Andressa Anholete via Getty Images

Apesar de pregar a harmonia entre os poderes no seu discurso, Fux já interferiu em decisões do Legislativo para defender os interesses da Lava Jato. Em 2016, por conta própria, ordenou que a Câmara reiniciasse do zero a análise da famigerada “Dez Medidas Anticorrupção” — um projeto de lei criado por Dallagnol e sua turma que se viram também no direito de legislar. Os deputados aprovaram depois de fazer uma série de alterações que desfiguraram a proposta original. O ministro mandou os deputados refazerem tudo. A fé em Fux se justificou mais uma vez.

O juiz mal esquentou a cadeira de presidente do STF e já sinalizou por duas vezes seguidas que continuará sendo um soldado fiel. A primeira foi no dia seguinte à posse, quando Fux liberou as ações que contestam a implementação do juiz de garantias, uma figura que o lavajatismo sempre rejeitou. Hoje, apenas um juiz comanda o processo criminal. Com o juiz de garantias, as tarefas seriam divididas entre dois juízes. Um seria responsável pela instrução do processo, autorizando buscas e apreensões e quebras de sigilo, e o outro apenas julgaria depois que o caso fosse enviado à Justiça. Essa é uma das kryptonitas da Lava Jato, que tem lutado incansavelmente contra o juiz de garantias como se isso fosse um empecilho ao combate à corrupção.

Fux pagou o segundo pedágio à Lava Jato em seu primeiro ato como presidente do CNJ. Para atender à sanha punitivista da operação e do que ele chama de “anseio popular, Fux decidiu assinar a Recomendação 78, restringindo os casos em que presos afetados pelo coronavírus possam ser soltos. A recomendação anterior, assinada pelo ex-presidente Dias Toffoli, orientava os juízes a decidir sobre a soltura dos presos infectados, independentemente do crime cometido. A norma é uma recomendação, não uma obrigação. Os juízes avaliariam caso a caso. Fux decidiu atropelar Toffoli e incluiu uma norma que sugere que condenados por lavagem de bens e crimes contra a administração pública não devem ser beneficiados com a revisão da pena. É o fetiche punitivista da Lava Jato falando mais alto. Como bem escreveu o jurista Lenio Streck, a recomendação de Fux se baseia em “hierarquização de vidas”, o que fere a isonomia e a igualdade pregadas pela Constituição.

Além do lavajatismo, outra característica marca a figura de Fux: o corporativismo. Em 2014, Fux pressionou autoridades para que sua filha fosse nomeada desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Pediu ajuda até para o então governador Sérgio Cabral, que foi seu cabo eleitoral para a vaga no Supremo. Marianna Fux, com apenas 32 e completamente desconhecida no meio jurídico, acabou conseguindo a vaga.

Naquele mesmo ano, ele decidiu aumentar as benesses dos seus colegas concedendo auxílio-moradia para todos os juízes por meio de uma liminar. Durante quatro anos, todos os seus colegas (inclusive sua filha) passaram a embolsar 4,3 mil mensais de auxílio-moradia. O auxílio só acabou quando o STF conseguiu arrancar um aumento de 6 mil reais nos salários dos juízes. Ou seja, o auxílio concedido por Fux era apenas uma forma de compensar a falta de reajuste no salário, algo que praticamente todas as categorias sofriam naquele momento. O Brasil tem um dos judiciários mais caros do mundo, e Fux não viu problema em torná-lo ainda mais caro.

Além de termos no poder uma extrema direita que vive atacando as instituições, agora temos também um STF presidido por um lavajatista, corporativista e adepto do populismo judicial. Não tem como isso dar certo.

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‘Valorize o seu sindicato, camarada’: bancário da Caixa conta luta histórica nos anos 90 https://sociologiadigital.org/2020/valorize-o-seu-sindicato-camarada-bancario-da-caixa-conta-luta-historica-nos-anos-90/ https://sociologiadigital.org/2020/valorize-o-seu-sindicato-camarada-bancario-da-caixa-conta-luta-historica-nos-anos-90/#respond Wed, 23 Sep 2020 01:40:25 +0000 https://sociologiadigital.org/?p=700 Mobilização sindical pagou salário integral a grevistas por mais de um ano e reverteu demissão em massa decretada pelo governo Collor. O slogan era ‘Não toque em meu companheiro’.

EM SUA TENTATIVA recente de emplacar uma imagem jovem nas redes sociais, Fernando Collor tenta limpar a imagem de seu governo marcado por corrupção e medidas impopulares. Hoje, o discurso de Bolsonaro retoma a retórica de Collor à época: que é preciso privatizar estatais, desburocratizar o estado e que sindicato é coisa de vagabundo. Jair Ferreira, 61 anos, funcionário da Caixa Econômica desde 1989, foi um dos bancários que participou das lutas que impediram o desmonte do banco público durante o governo Collor, em meio à retórica agressiva do então presidente.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo

Ao Intercept, Ferreira relembra a trajetória da campanha ‘Não toque em meu companheiro’, que reintegrou 110 bancários exonerados pelo governo federal como retaliação após uma greve por reajuste salarial, em 1991. O bancário foi um dos 110 demitidos e participou da mobilização de cerca de 35 mil funcionários da Caixa, que bancaram o salário dos mais de cem demitidos por um ano, até que fossem reintegrados ao banco.

“Às vezes, a gente só aprende as coisas no enfrentamento. Sem ele, você perde essa consciência política”, conta Ferreira. Era um tempo em que os sindicatos estavam fortalecidos, forjados em uma luta iniciada na resistência contra à ditadura e intensificada com as Diretas Já e a promulgação da Constituição de 1988. Um cenário bem diferente do atual, em que sindicatos estão enfraquecidos.

Ferreira relembra que, quando Lula ganhou em 2002, muitas lideranças sindicais foram para o governo, em cargos e ministérios, criando um vácuo dentro do movimento. Segundo o bancário, a aliança com o governo petista desacostumou trabalhadores a lutas mais contundentes, como as da era Collor, e os desmobilizou contra ameaças futuras. “Como não teve enfrentamento de classes, e o governo sempre foi mediador na negociação por direitos, quando veio o primeiro confronto o povo achou que estava nos governos do PT, mas não estamos mais”, opina.

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As reformas de Temer que destituíram direitos trabalhistas e a contribuição sindical obrigatória, enfraquecendo ainda mais o movimento. “Entre 2003 e 2015, a palavra privatização não existia e o governo tinha outra visão, mas do golpe contra a Dilma para cá, já surgiram várias vendas. Com Bolsonaro, isso escancarou”, detalha. Diversos estudos demonstram que sindicatos reduzem a desigualdade social e melhoram a renda dos trabalhadores.

A história de Jair Ferreira e dos outros 109 demitidos por Collor se tornou um documentário, dirigido pela cineasta Maria Augusto Ramos. Ao Intercept, ele narrou detalhes desse episódio histórico do sindicalismo brasileiro.

A história de Jair Ferreira e dos outros 109 demitidos por Collor se tornou um documentário.

Foto: Arquivo Pessoal

EU ME TORNEI empregado da Caixa Econômica Federal em 1989, mesmo ano em que Fernando Collor era eleito presidente do Brasil falando contra os “marajás” – termo usado especialmente contra funcionários públicos, que seriam todos privilegiados com grandes salários.

O discurso dele era: “o estado é atrasado, nossos carros são carroças, e os empregados públicos não trabalham, são marajás”. Esse é o jargão usado no processo normal de desgastar servidores e enfraquecer empresas públicas para então sucatear e vender.

Pouco após assumir, em 15 de março de 1990, Collor já instituiu programas de desregulamentação e desestatização, com esse discurso de que o estado estava mal gerenciado, para ‘fortalecer a iniciativa privada e reduzir a interferência do estado na vida e atividades dos indivíduos’. É impressionante ver que as forças políticas que compunham o governo Collor são as mesmas do Bolsonaro, inclusive os discursos contra supostos “marajás”.

Toda companhia tem problemas, isso é natural, mas jogam todos no mesmo saco. Nessa época, a Caixa recém havia aberto um concurso em 1988. Entraram 20, 30 mil concursados porque o banco é grande e havia muita gente terceirizada. Meses depois, com 100 dias de governo, Collor pôs o discurso em prática: fechou empresas públicas e demitiu 2,6 mil concursados da Caixa.

Não toleramos. Na campanha salarial de 1990, nos organizamos, fizemos greve e os demitidos foram readmitidos, mas outro embate com o governo viria no ano seguinte.

A solidariedade foi uma das marcas do movimento.

Foto: Reprodução/Documentário Não toque em meu companheiro

‘Não toque em meu companheiro’

No ano seguinte, houve nova mobilização da categoria bancária, para a campanha salarial de 1991. Fizemos uma greve de 21 dias, que foi muito forte, com muita gente de bancos públicos e privados, que não era para atingir o Collor, mas para conquistar nosso reajuste salarial em meio à hiperinflação. Os banqueiros sempre ganham muito dinheiro, mas nunca querem dar aumento para trabalhador.

Mas o Tribunal Superior do Trabalho julgou a greve ilegal mesmo sem termos fechado acordo, e a Caixa determinou a volta imediata ao trabalho. Com isso, os bancários foram retornando, mas, em certas partes do país, as pessoas resistiram por mais dois dias até uma nova assembleia. O governo decidiu então editar portarias com demissões de funcionários desses locais com maior resistência.

Como retaliação à greve, demitiram 50 em São Paulo, 30 em Belo Horizonte e 30 em Londrina – entre eles, eu, que era delegado sindical. Tinha meus 31 anos e havia me mudado para a agência em Londrina, seis meses antes. No total, fomos 110 demitidos.

Todos ficaram muito sensibilizados com a retaliação, e surgiu o desafio de manter a mobilização. Tínhamos uma certeza: ou a gente apostava na luta coletiva, ou estaríamos fadados a não conseguir a reintegração. Era uma luta também era pelo fortalecimento da Caixa e dos movimentos dos trabalhadores.

Nós, então, nos organizamos junto à Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), que coordenava isso na época. Fizemos uma campanha para arrecadar recursos, que teve apoio dos trabalhadores do banco – os empregados autorizaram um desconto de cerca de 0,3% em suas folhas de pagamento para ajudar nossa campanha.

Após quatro meses, chegou um momento em que tínhamos 35 mil empregados contribuindo com esse pequeno percentual capaz de pagar nosso salário líquido enquanto lutávamos pela nossa reintegração, um movimento de solidariedade sem precedentes. Aí alguém sugeriu o nome ‘Não toque em meu companheiro’ – e pegou. Surgiu também o slogan ‘Reintegrar para não entregar’, e esse virou o mote da campanha.

No documentário dirigido por Maria Augusto Ramos, alguns dos 110 demitidos se reencontraram.

Fotos: Reprodução/documentário Não toque em meu companheiro

‘Trabalhadores têm de valorizar suas entidades’

Esse ano de mobilização nacional dos demitidos não foi fácil. Nossa função era manter a campanha viva e não deixar esquecer que era uma retaliação, mas foi sofrido. Às vezes, eu levantava de manhã, olhava para cima, para o lado, e não tinha chão. Tinha gente com crianças, esposa, casos e mais casos de chorar. Mas como fui à luta coletiva, foquei menos nessa questão mais pessoal.

Cartaz do documentário dirigido pela cineasta Maria Augusta Ramos, lançado em julho.

Foto: Reprodução/Documentário Não toque em meu companheiro

Em nosso caso, em Londrina, nosso trabalho era ir para os sindicatos e participar ativamente, viajar, fazer reuniões. Tudo isso bancado pelas camisetas que vendíamos e apoiados pelo movimento dos trabalhadores, as entidades. Com nosso salário líquido garantido pela campanha, podíamos fazer essa luta política sem passar fome.

Em nossa rotina, nos reuníamos todos os dias para não desmobilizar, porque havia o risco da pessoa se desmotivar e ir procurar outro emprego, deixar a luta. No sindicato dos bancários de Londrina, nos reuníamos sempre cerca de 20 pessoas. Havia dias que muitos de nós chorávamos, porque o discurso do governo era truculento contra nós, os demitidos e os sindicatos.

Ninguém ali era baderneiro, mas era disso que nos chamavam. Isso pra gente foi difícil: ver mãe, pai de família chorando enquanto tínhamos que alimentar essa expectativa, de que iríamos vencer e garantir a reintegração. Eu era mais jovem, solteiro, então pessoalmente não senti tanto como essas pessoas mais velhas, com filhos. Em compensação, aprendi que a defesa da democracia tem esse custo de uma atuação política.

Foram os bancários da Caixa, de modo geral, que sustentaram esse combate contra o projeto do Collor de destruir o estado, de acabar com o serviço público. Mantivemos uma resistência prolongada aos ataques do governo, amparada pela força da organização coletiva. É por isso que as entidades precisam ser reconhecidas e valorizadas: se você não valorizar, na hora do aperto, não terá a quem recorrer, já que o dono do capital, da empresa, está preocupado só com resultados financeiros e você é só mais um lá dentro. Valorize seu sindicato, camarada.

Durante um ano mantivemos a campanha acreditando que íamos conquistar a reintegração. Isso foi ganhando mais corpo político com a CPI do Collor em 1992, até haver o processo de impeachment. Havíamos sido demitidos um ano antes, em 1º de outubro, e fomos readmitidos logo após a renúncia de Collor. Dias depois da queda, a Caixa já editou uma portaria para nos reintegrar. Foi uma vitória histórica.

Nos anos 90, em meio à hiperinflação, campanhas por reajuste salarial eram comuns.

Foto: Reprodução/Documentário Não toque em meu companheiro

‘Se tirar a Caixa, não tem quem assuma seu papel social’

Essas atuações políticas vêm porque nós, servidores, temos a consciência de que precisamos proteger as empresas públicas. São elas que operam políticas públicas em escala para a população mais pobre do país. A Caixa, por exemplo, foi criada lá em 1861, na época do Império, para cuidar da compra das alforrias e liberdade dos escravizados.

Nos anos 1970, ela se tornou a Caixa Econômica Federal, que não tem acionistas privados e é 100% do estado brasileiro – e sempre defendemos que ela seja esse banco múltiplo que assume um papel social. Por exemplo, 70% do financiamento habitacional é feito na Caixa porque temos expertise nisso. Para baixa renda, pessoas mais pobres, o banco financia cerca de 90% do valor do Minha Casa, Minha Vida. Essa parte da sociedade com renda instável não interessa aos bancos privados.

Hoje, temos outros programas. O FGTS, que é um benefício para todos os trabalhadores, foi centralizado na Caixa em 1991: antes estava depositado em 74 bancos diferentes e isso era uma confusão. Hoje, há o bolsa família, que é sacado na Caixa. Isso são políticas de estado. Nossas campanhas de não à privatização sempre tocam nisso: há coisas que, se não for o estado, o setor privado não vai fazer porque está interessado no lucro imediato.

Agora há o auxílio emergencial. Os bancos privados não toparam dividir o atendimento à população com a Caixa. Por que o Bradesco não paga? Por que o Itaú não paga? Primeiro, porque eles não querem pobres nas agências. Segundo, isso não dá lucro como eles querem. Então essa população, a que proporcionalmente mais paga imposto, quem atende e os “bancariza” é a Caixa Econômica Federal.

Sim, tem agência que dá prejuízo – e isso é normal –, mas muitas também dão lucro. Agora, a pessoa que mora numa região mais pobre também não pode ter acesso a um financiamento, uma agência, no local mais próximo à cidade dele? A Caixa tem até agências-barco que sobem o Rio Amazonas e vão à Ilha de Marajó, no Pará, em regiões de pobreza e isolamento, enquanto o setor privado só vai onde houver lucratividade.

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Nessa agência-barco, os funcionários públicos entram lá, sobem o delta do Amazonas acima, oito dias para ir, oito para voltar, e onde param, eles vão, atendem e fazem tudo isso que se faz em uma agência: cadastro, FGTS, auxílios e todos os serviços bancários. Mais ninguém vai nesses lugares prestar serviços. E essas pessoas não são brasileiras? Não pagam impostos e trabalham? Então, na nossa opinião, esse papel que a Caixa tem, se você tirar ela, não tem outro para assumir o lugar.

Hoje, desde o golpe contra a Dilma, há um processo de preparação para privatizar a Caixa, que está sendo fatiada aos poucos. Nos últimos anos, tem havido a venda de ações da Petrobrás, Banco do Brasil e outras empresas com ativos comprados pela Caixa, um total de R$ 15 bilhões. Vão vendendo essas ações e diminuindo as carteiras, o que nos enfraquece a longo prazo e nos torna dependentes de aporte do Tesouro, dado que é uma empresa pública.

Estamos deixando de emprestar às grandes empresas. Se não empresto nada, como vou fazer o dinheiro circular? Um banco vive de emprestar dinheiro, cobrar juros e receber de volta. Quando começam a tirar os financiamentos ou reduzir o FGTS, nos tiram essa capacidade. Nossa preocupação, hoje, é a Caixa ser vendida aos pedaços, operação por operação, enfraquecendo o conjunto: a área de seguros, as loterias e nossos cartões, que cobram suas próprias tarifas e tudo.

MP 995, editada em agosto deste ano, permite que o governo faça isso, que crie subsidiárias para serem vendidas sem a aprovação do Congresso Nacional. Estamos totalmente mobilizados contra todas essas investidas e entidades já entraram com ações no STF contra a medida.

Essa palavra, privatização, não existiu entre 2003 e 2015, quando o governo tinha outra visão. Desde o golpe na Dilma até hoje, já surgiram várias vendas. Agora, no governo Bolsonaro isso escancarou. E o pior: o Collor, apesar de tudo, era mais preparado que o Bolsonaro. Nem os ministérios dele eram tão mal montados.

A equipe do Paulo Guedes é de pessoas que sabem vender pacotes de investimento, e não gerir um estado. Do ponto de vista estrutural, só sabem privatizar, o que é um horror para o caso da Caixa. Não querem saber da nação, gerar empregos, desenvolvimento, nem se preocupam com a desigualdade social. Com Collor, havia um governo liberal. Hoje, são ultraliberais que nos governam.

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Para onde os ‘anseios da sociedade’ guiarão Luiz Fux, o novo presidente do STF? Aqui vão umas pistas. https://sociologiadigital.org/2020/para-onde-os-anseios-da-sociedade-guiarao-luiz-fux-o-novo-presidente-do-stf-aqui-vao-umas-pistas/ https://sociologiadigital.org/2020/para-onde-os-anseios-da-sociedade-guiarao-luiz-fux-o-novo-presidente-do-stf-aqui-vao-umas-pistas/#respond Wed, 23 Sep 2020 01:37:43 +0000 https://sociologiadigital.org/?p=696 EM JULHO DO ANO PASSADO, o ministro do STF Luiz Fux declarou em uma palestra para investidores: “Quero garantir que a Lava Jato vai continuar. E essa palavra não é de um brasileiro, é de alguém que assume a presidência do Supremo Tribunal Federal no ano que vem, podem me cobrar.” Até aqui essa promessa tem sido cumprida com louvor, sob os aplausos do lavajatismo.

Fux assumiu a presidência do STF num dos momentos mais complicados para a corte desde a redemocratização. Um juiz marcado pelo apoio absoluto à Lava Jato — a operação que naturalizou a violação da Constituição para atingir fins políticos — vai comandar um STF sob permanente pressão do bolsonarismo. Registre-se que, há poucos meses, indignado com decisões do Supremo, Bolsonaro decidiu mandar tropas para intervir no STF.

“Excelente. In Fux we trust“, escreveu o então juiz Sergio Moro para o seu parceiro lavajatista no MPF Deltan Dallagnol. Foi uma resposta ao relato de uma conversa que o procurador teve com Fux, na qual deixou claro o total alinhamento do ministro ao lavajatismo: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos, mais uma vez. Só faltou, como bom carioca, chamar-me pra ir à casa dele rs. Mas os sinais foram ótimos”. Fux é o homem da força-tarefa no STF.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo

Nem as publicações da Vaza Jato, que escancaram as barbaridades da operação, abalaram o lavajatismo de Fux. Isso ficou bastante claro em seu discurso de posse. Prestou reverências à força-tarefa e prometeu defendê-la: “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro”. Fux fala isso em um momento em que a Lava Jato passou a sofrer algumas derrotas no Supremo. Se depender do novo presidente, isso não irá mais se repetir.

É importante lembrar como o novo presidente do STF se curvou diante da violência institucional comandada pela Lava Jato. A popularidade da força-tarefa seduziu Fux, que não viu problema em driblar a Constituição para atender aos interesses lavajatistas. As tabelinhas entre procuradores e Fux eram frequentes como, por exemplo, quando ele suspendeu uma liminar que autorizava uma entrevista de Lula à Folha, atendendo a um pedido do Partido Novo. Na decisão, o ministro afirmou que “se faz necessária a relativização excepcional da liberdade de imprensa”.

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No escurinho do Telegram, os procuradores temiam que a entrevista de Lula pudesse ajudar Haddad. Eles comemoram muito a decisão de Fux. Na época, o advogado da Folha de S. Paulo declarou que a decisão do ministro foi “o mais grave ato de censura desde o regime militar”. E foi. Mesmo dentro da cadeia, Lula era o líder nas pesquisas para presidente. Uma entrevista sua tinha grande potencial ajudar a alavancar Haddad, daí o desespero dos lavajatistas em impedi-la. Após suspender a liminar, Fux disse que as decisões da corte deveriam representar “o anseio da sociedade” — uma declaração vergonhosa para um ministro do STF, que deveria se guiar apenas pela Constituição, e não pelas paixões populares. Isso é lavajatismo na sua mais pura essência.Como bom lavajatista que é, Fux ajudou, ainda que indiretamente, a eleger Bolsonaro.

A Vaza Jato trouxe à tona o modo como a operação manipulava, com ajuda da grande mídia, o tal “anseio da sociedade”. Fux chancelou um ato de censura para atender os interesses da Lava Jato e, por tabela, contribuiu para a manutenção de Bolsonaro na liderança das pesquisas.

No discurso de posse, Fux mandou também um recado ao Planalto ao afirmar que a harmonia entre os poderes não se confunde com “contemplação ou subserviência”. A expectativa é a de que Fux seja mais duro com Bolsonaro do que foi Toffoli, até porque lavajatismo e bolsonarismo estão brigados. Mas é importante lembrar que, como bom lavajatista que é, Fux ajudou, ainda que indiretamente, a eleger Bolsonaro. Nos dois anos que antecederam a eleição, o ministro achou razoável ficar sentado em cima do processo em que o então candidato foi acusado de fazer apologia ao estupro naquele vergonhoso episódio com Maria do Rosário no Salão Verde. Se fosse condenado, Bolsonaro se tornaria inelegível.

Nos dois anos que precederam a eleição de 2018, Fux ficou sentado em cima do processo que acusava Bolsonaro de apologia ao estupro.

Foto: Andressa Anholete via Getty Images

Apesar de pregar a harmonia entre os poderes no seu discurso, Fux já interferiu em decisões do Legislativo para defender os interesses da Lava Jato. Em 2016, por conta própria, ordenou que a Câmara reiniciasse do zero a análise da famigerada “Dez Medidas Anticorrupção” — um projeto de lei criado por Dallagnol e sua turma que se viram também no direito de legislar. Os deputados aprovaram depois de fazer uma série de alterações que desfiguraram a proposta original. O ministro mandou os deputados refazerem tudo. A fé em Fux se justificou mais uma vez.

O juiz mal esquentou a cadeira de presidente do STF e já sinalizou por duas vezes seguidas que continuará sendo um soldado fiel. A primeira foi no dia seguinte à posse, quando Fux liberou as ações que contestam a implementação do juiz de garantias, uma figura que o lavajatismo sempre rejeitou. Hoje, apenas um juiz comanda o processo criminal. Com o juiz de garantias, as tarefas seriam divididas entre dois juízes. Um seria responsável pela instrução do processo, autorizando buscas e apreensões e quebras de sigilo, e o outro apenas julgaria depois que o caso fosse enviado à Justiça. Essa é uma das kryptonitas da Lava Jato, que tem lutado incansavelmente contra o juiz de garantias como se isso fosse um empecilho ao combate à corrupção.

Fux pagou o segundo pedágio à Lava Jato em seu primeiro ato como presidente do CNJ. Para atender à sanha punitivista da operação e do que ele chama de “anseio popular, Fux decidiu assinar a Recomendação 78, restringindo os casos em que presos afetados pelo coronavírus possam ser soltos. A recomendação anterior, assinada pelo ex-presidente Dias Toffoli, orientava os juízes a decidir sobre a soltura dos presos infectados, independentemente do crime cometido. A norma é uma recomendação, não uma obrigação. Os juízes avaliariam caso a caso. Fux decidiu atropelar Toffoli e incluiu uma norma que sugere que condenados por lavagem de bens e crimes contra a administração pública não devem ser beneficiados com a revisão da pena. É o fetiche punitivista da Lava Jato falando mais alto. Como bem escreveu o jurista Lenio Streck, a recomendação de Fux se baseia em “hierarquização de vidas”, o que fere a isonomia e a igualdade pregadas pela Constituição.

Além do lavajatismo, outra característica marca a figura de Fux: o corporativismo. Em 2014, Fux pressionou autoridades para que sua filha fosse nomeada desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Pediu ajuda até para o então governador Sérgio Cabral, que foi seu cabo eleitoral para a vaga no Supremo. Marianna Fux, com apenas 32 e completamente desconhecida no meio jurídico, acabou conseguindo a vaga.

Naquele mesmo ano, ele decidiu aumentar as benesses dos seus colegas concedendo auxílio-moradia para todos os juízes por meio de uma liminar. Durante quatro anos, todos os seus colegas (inclusive sua filha) passaram a embolsar 4,3 mil mensais de auxílio-moradia. O auxílio só acabou quando o STF conseguiu arrancar um aumento de 6 mil reais nos salários dos juízes. Ou seja, o auxílio concedido por Fux era apenas uma forma de compensar a falta de reajuste no salário, algo que praticamente todas as categorias sofriam naquele momento. O Brasil tem um dos judiciários mais caros do mundo, e Fux não viu problema em torná-lo ainda mais caro.

Além de termos no poder uma extrema direita que vive atacando as instituições, agora temos também um STF presidido por um lavajatista, corporativista e adepto do populismo judicial. Não tem como isso dar certo.

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Conheça o Córtex, sistema de vigilância do governo que integra de placa de carro a dados de emprego https://sociologiadigital.org/2020/conheca-o-cortex-sistema-de-vigilancia-do-governo-que-integra-de-placa-de-carro-a-dados-de-emprego/ https://sociologiadigital.org/2020/conheca-o-cortex-sistema-de-vigilancia-do-governo-que-integra-de-placa-de-carro-a-dados-de-emprego/#respond Wed, 23 Sep 2020 01:34:12 +0000 https://sociologiadigital.org/?p=693 Sem alarde, o Ministério da Justiça está expandindo uma das maiores ferramentas de vigilância e controle de que se tem notícia no Brasil. Trata-se do Córtex, uma tecnologia de inteligência artificial que usa a leitura de placas de veículos por milhares de câmeras viárias espalhadas por rodovias, pontes, túneis, ruas e avenidas país afora para rastrear alvos móveis em tempo real. 

O Córtex também possui acesso em poucos segundos a diversos bancos de dados com informações sigilosas e sensíveis de cidadãos e empresas, como a Rais, a Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério da Economia. A poucos cliques, oficiais podem ter acesso a dados cadastrais e trabalhistas que todas as empresas têm sobre seus funcionários, incluindo RG, CPF, endereço, dependentes, salário e cargo. 

Em tese, é uma ferramenta poderosa de combate ao crime. Na prática, o sistema pode ser usado para monitoramento e vigilância de cidadãos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, lideranças políticas e manifestantes, em uma escala sem precedentes. 

O Ministério da Justiça, oficialmente, nega que o sistema seja integrado à base de dados do Ministério da Economia. Mas não é o que mostra um vídeo enviado ao Intercept por uma fonte anônima.

Na gravação, feita em abril deste ano, o capitão da Polícia Militar de São Paulo Eduardo Fernandes Gonçalves explica como usar a ferramenta. Desde 2018 cedido pelo governo de São Paulo à Seopi, a Secretaria de Operações Integradas da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Fernandes demonstra a facilidade em se cruzar informações a partir de um registro de placa de carro. A Rais está entre as bases de dados da demonstração.

“O que é interessante aqui? Que, com base no CNPJ, eu recupero a relação de todos os funcionários que trabalham hoje na empresa”, diz Fernandes na apresentação. “Cruzando essas informações aqui com as bases de CPFs, que os senhores também terão à disposição, dá para ter uma relação bem rápida de onde essa pessoa mora”. 

Os agentes conseguem a partir da placa do carro saber toda a sua movimentação pela cidade, com quem você se encontrou, quem te acompanhou nos deslocamentos e quem te visitou. Também podem cruzar esse histórico com informações pessoais e dados de emprego e salários, incluindo boletins de ocorrência e passagens pela polícia. 

No vídeo, o que se vê é uma ferramenta poderosa que está à disposição de milhares de pessoas das forças de segurança e setores de inteligência dos governos federal, estaduais e até municipais, tudo sem critérios claros de controle sobre seu uso. A fonte que enviou o vídeo ao Intercept, que não se identificou por medo de retaliações, estima que cerca de 10 mil servidores tenham acesso ao sistema. Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo

A Seopi, que desenvolveu o Córtex, era um setor do Ministério da Justiça praticamente desconhecido até julho, quando a existência de um dossiê de inteligência contra policiais e professores ligados a movimentos antifascistas produzido ali veio a público. O diretor de Inteligência da Seopi, Gilson Libório, um dos responsáveis diretos tanto pelo Córtex quanto pelo dossiê secreto, foi exonerado depois que o caso virou um escândalo e passou a ser investigado pelo Ministério Público Federal. Em decisão plenária, os ministros do STF decidiram mandar o ministério suspender a produção de dossiês por motivações políticas. Mas o Córtex continua em expansão.

O sistema foi usado pela Seopi nas cinco cidades-sede da Copa América no ano passado, nas eleições e no Enem de 2018. Hoje conta com pelo 6 mil câmeras, de acordo com declarações do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, em cuja gestão foi implantada a tecnologia.

Quem, quando e onde em dois segundos

No sistema, quando um “alvo móvel” é cadastrado e passa por uma câmera com capacidade de leitura de placas, leva dois segundos para os agentes de inteligência ou policiais interessados serem avisados até por push no app do celular. A partir daí, é possível realizar uma série de tarefas: continuar monitorando o alvo, mandar o policial mais próximo tentar abordá-lo ou cruzar as informações do veículo e seu dono com diversas outras à disposição do governo federal. 

No vídeo enviado ao Intercept, Fernandes, o PM escalado para o treinamento, deixa clara a facilidade em operar o sistema e cruzar os dados. Tudo pode ser feito direto pelos agentes, antes de qualquer autorização judicial.

O vídeo mostra que são acessíveis com o Córtex bancos de dados do Denatran, o Departamento Nacional de Trânsito; o Sinesp, Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública; o Depen, Departamento Penitenciário Nacional; o cadastro nacional de CPFs; o cadastro nacional de foragidos; o de boletins de ocorrência; e o banco nacional de perfis genéticos; além do Alerta Brasil da Polícia Rodoviária Federal e do Sinivem, o Sistema Integrado Nacional de Identificação de Veículos em Movimento. 

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Questionado, o ministério da Justiça negou que o Cortex tenha acesso à Rais, a base de dados do ministério da Economia. Não é o que se vê no vídeo de uma hora, um minuto e 48 segundos. Ali, Fernandes dá até um exemplo: com a ajuda do Córtex, ele acessa todas as informações dos funcionários da concessionária do aeroporto de Viracopos, em Campinas, diz quantos funcionários a empresa tem e começa a esmiuçar alguns nomes. 

Na gravação, ele abre uma planilha com todos os funcionários da empresa – com dados com CPFs e datas de nascimento –, e afirma ser possível saber quais deles transitaram pela cidade de Guarulhos no dia 10 de janeiro. 

Funcionário público do governo de São Paulo cedido para o Ministério da Justiça, Fernandes trabalha desde pelo menos 2018 na área de inteligência do governo. Lá, trabalha na diretoria de tecnologia, onde recebe mais de R$3 mil acrescidos ao seu salário de policial para participar de um “grupo de trabalho responsável por elaborar propostas de soluções tecnológicas”. Nas contas do governo federal, é um servidor “mobilizado”. Nas redes sociais, é um fã incondicional do presidente Bolsonaro.

Na época das eleições, o PM ostentou até uma foto ao lado do então candidato de extrema direita. Pouco depois, ele trabalharia na área de inteligência do governo.

Foto: Reprodução/Facebook

“Jogando aqui, fazendo a consulta, tem uma placa aqui, ele pertence a um funcionário da empresa que administra o aeroporto, e transitou em Guarulhos nesse dia”, diz o PM no vídeo, mostrando detalhes do deslocamento do funcionário, que inclui avenidas, sentido e horário. “Às 20 horas ele tava no sentido bairro-centro, então ele tava voltando”, diz Fernandes. “Aí vai a criatividade. Joga a placa do carro, levanta itinerário, quem tava junto, levanta. Ou melhor, pega a placa do carro, vai pro CPF do proprietário, vai pra Rais, vê onde trabalhava, vê quem trabalhou junto”, disse.

Os dados dos alvos ficam armazenados por dez anos e o índice de acerto nas leituras é de 92%, segundo a demonstração em vídeo da tecnologia.  

De acordo com a fonte anônima que enviou o material ao Intercept, cerca de 10 mil pessoas da Abin, a Agência Brasileira de Informação, ministério da Justiça, PRF, PF, PMs estaduais, Polícia Civil e até guardas municipais possuem acesso ao sistema. Questionado, o Ministério da Justiça não confirmou nem desmentiu.

No tutorial, Fernandes afirma que todos os movimentos dentro do Córtex ficam registrados e são auditáveis. “Se houver algum tipo de desvio nesse uso, o profissional que fez isso vai sofrer as consequências do cadastro indevido”, alerta o agente no vídeo. Apesar disso, ele não explica que consequências seriam essas e quem fiscaliza o uso do sistema pelos milhares de usuários com acesso simultâneo. Na prática, a operação do Córtex e o próprio trabalho da Seopi não possuem regras claras e estão cercados de sigilo. 

Ilustração: Felipe Mayerle para o Intercept Brasil

Integração nacional

Oembrião do que viria a se tornar o Córtex surgiu ainda no governo Dilma Rousseff, com a criação do Sinesp, Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e Sobre Drogas. A iniciativa pretendia unir em um único sistema informações de bancos de dados estaduais como boletins de ocorrência, veículos com alerta de furto e roubo, presos e foragidos. 

Pouco antes a Copa do Mundo de 2014, o governo federal lançou o Centro Integrado de Comando e Controle Nacional, que reunia representantes e informações das secretarias de segurança pública das cidades-sede do evento e imagens em tempo real de câmeras viárias e de segurança espalhadas por estas cidades. A principal preocupação do governo era a eventual ação de grupos terroristas, crime organizado e manifestações que colocassem em risco o evento como as que aconteceram no ano anterior.Quem não cumpre fica sem o repasse de recursos federais para a área de segurança pública.

Já em 2015, um decreto da presidente sistematizou, ampliou e oficializou o uso do Alerta Brasil — criado pela PRF em 2013, também em meio aos investimentos em segurança pública para o mundial de futebol da Fifa. 

Em 2018, já no governo do presidente Michel Temer, foi aprovada a lei que criou o Susp. A partir dali, ficou estabelecido o compartilhamento com a Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça de uma série de bancos de dados até então separados das secretarias de segurança pública dos estados. Quem não cumpre fica sem o repasse de recursos federais para a área de segurança pública.

Até o final do ano passado, de acordo com informações da PRF, pelo menos 12 estados compartilhavam suas câmeras com o Córtex: Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima e Amapá. Destes, as secretarias de segurança pública de RJ, SC, AP, AC, GO, MT e RR e DF estavam conectadas com o Córtex.

Além dos governos estaduais existem parcerias — e acesso às câmeras — direto com os municípios. 

No final de 2017, por exemplo, a Prefeitura de Atibaia, em São Paulo, anunciou que suas câmeras viárias leitoras de placas passariam a fazer parte do Alerta Brasil, sistema de monitoramento de placas criado pela Polícia Rodoviária Federal em 2013. 

O ministro da Justiça, André Mendonça, durante sua posse após a saída de Moro. A Seopi foi criada em 2019, mas com Mendonça ganhou contornou políticos.

Foto: Andres Borges/Bloomberg via Getty Images

O braço de vigilância do ministério da Justiça

OAlerta Brasil foi uma das tecnologias precursoras do Córtex. Em setembro do ano passado, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, disse no Twitter que os dois sistemas estavam completamente integrados. 

“A unificação dos sistemas de monitoramento viário Alerta Brasil 3.0 da PRF e Cortex da SEOPI, ambos do MJSP, levará à redução de custos e a criação de um sistema integrado com seis mil pontos de monitoramento no país”, afirmou Moro. “Às vezes, integrar exige só olhar para quem está do seu lado”. Hoje, inúmeras cidades fazem parte do sistema, que recebe também as imagens de concessionárias de rodovias estaduais, vias urbanas e rodovias federais.

Questionado, o Ministério da Justiça não informou o número exato de parcerias com governos estaduais e municipais para o uso da ferramenta. Sobre isso, disse apenas que “é importante ressaltar que o sistema está sendo desenvolvido com o trabalho de técnicos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, além das contribuições dos usuários dos estados que aos poucos são inseridos no contexto do sistema”. E que o custo mensal da infraestrutura necessária para suportar o Córtex é R$ 30 mil. 

A Seopi, braço de inteligência do Ministério da Justiça hoje responsável pelo sistema, foi criada no início da gestão de Sergio Moro no Ministério da Justiça. O decreto número 9.662, editado pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de mandato, atribui à secretaria a produção de serviços de inteligência. Assim, a Seopi age de maneira análoga a outros órgãos de inteligência como a Abin, a Agência Brasileira de Inteligência; o GSI, Gabinete de Segurança Institucional; e o Centro de Inteligência do Exército, o CIE. E, assim como eles, não são obrigados a passar por um controle externo do Ministério Público, congresso ou qualquer instância da justiça. ‘Não dá para dizer que o uso atual do Córtex é ilegal hoje em termos jurídicos, mas dá para afirmar que é profundamente problemático e potencialmente ilegal’.

A missão do órgão é produzir inteligência para combate ao crime organizado. Um exemplo deste tipo de ação foi a transferência das principais lideranças da facção criminosa Primeiro Comando da Capital de presídios paulistas para penitenciárias federais, no início do ano passado. 

Além disso, como revela a existência do dossiê sobre os antifascistas, a Seopi vem sendo utilizada também com fins políticos. Por meio da secretaria, o ministério produziu em sigilo neste ano uma espécie de lista com nomes, endereços nas redes sociais e fotografias de 579 servidores públicos da área de segurança pública e três professores universitários, todos críticos ao governo Bolsonaro, ligados a movimentos antifascistas. O material circulou na PF, CIE e Palácio do Planalto.

Após a existência do dossiê vir a público, Moro afirmou que o monitoramento de opositores do governo não acontecia quando ele era ministro. “A Seopi produz inteligência e operações, na minha época focadas em combate ao crime organizado, crime cibernético e crime violento”, afirmou o ex-ministro. “Esses relatórios ora controvertidos não são do meu período”. 

Na infame reunião ministerial do dia 22 de abril, Bolsonaro reclama bastante das informações de inteligência que recebia oficialmente. “O nosso serviço de informações, todos eles, são uma vergonha, uma vergonha!”, bradou o presidente no encontro. “Eu não sou informado! E não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir! E ponto final”. 

No total, a Seopi é composta por quatro diretorias e dez coordenadorias. Quando assumiu a pasta da Justiça após a saída de Moro, o ministro André Mendonça trocou nove das 13 pessoas que chefiavam estes órgãos. Os nomeados por Mendonça foram os responsáveis pelo dossiê contra antifascistas – e também cuidam do Córtex.

Tecnoautoritarismo

Não há uma lei, decreto, portaria ou qualquer norma oficial pública que regulamente o uso do Córtex dentro da Seopi. Perguntei ao Ministério da Justiça quais as normativas legais, os dispositivos de controle e quem fiscaliza seu uso. O governo se limitou a dizer que o Córtex opera de acordo com o Sistema Único de Segurança Pública, que determina o intercâmbio de informações entre órgãos, mas não estabelece limites e proteção à privacidade. 

“Não dá para dizer que o uso atual do Córtex é ilegal hoje em termos jurídicos, mas dá para afirmar que é profundamente problemático e potencialmente ilegal”, me disse Rafael Zanatta, advogado e pesquisador do Lavits, a Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. “Eu também não sei, como pesquisador, o que eles fazem. Existe um problema fundamental aí de opacidade. Isso já é um ponto de partida muito problemático”.

Lei Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em agosto de 2018, prevê o uso de dados pessoais dos cidadãos para atividades de segurança pública, segurança nacional e investigação criminal – mas não de maneira indiscriminada. “A LGPD deu um passo importante que foi separar isso em alíneas. Segurança pública é uma coisa, segurança nacional é outra, atividades de investigação é outra. Ter essa clareza e separação de poderes é muito importante”. A lei de proteção de dados prevê que o uso de dados para fins de segurança deverá ter regulamentação própria, que ainda não existe.

Para o pesquisador, o livre compartilhamento de bases de dados sigilosos de entes governamentais diferentes foge ao princípio da finalidade e insere-se em uma discussão global sobre “tecnoautoritarismo”. “É um termo novo para um problema antigo. Essa preocupação das capacidades de vigilância e uso de tecnologias para segurança e vigilância é um tema clássico”, afirma. “Existe um processo muito amplo de contestação disso no mundo todo”. Na Europa e nos EUA, exemplifica, a adoção de novas tecnologias de vigilância é discutida publicamente, e há separação jurisdicional entre informações sob guarda de entes governamentais diferentes. 

O Ministério diz que a Seopi usou o Córtex nas operações de segurança das eleições em 2018, Operações Luz na Infância 5 e 6 (que resultou na prisão de mais de 90 pessoas acusadas de crimes sexuais contra crianças e adolescentes), assim como no “monitoramento nacional dos impactos da Covid-19 para a segurança pública.” E que “a integração de informações de monitoramento urbano permite a detecção de veículos com indicativo criminal registrado, como furto e roubo para emprego exclusivo nas atividades de segurança pública para repressão ao crime organizado e criminalidade violenta”.

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